Roberto Robadey e sua equipe permaneceram à frente da Defesa Civil de Nova Friburgo até agosto de 2011, período em que a cidade começou a ser reconstruída. Em seguida, o cargo foi assumido por João Paulo Mori, que já havia liderado a coordenadoria entre 2007 e 2009. Dessa vez, porém, a situação era diferente: Nova Friburgo enfrentaria a primeira temporada de chuvas após a tragédia, ainda marcada por profundas cicatrizes e sem preparo suficiente para lidar com novos riscos.
Naquele mesmo ano, a Defesa Civil foi transformada em uma secretaria municipal, permitindo avanços como a aquisição de novas viaturas, a formação de uma equipe de engenheiros especializados em avaliação de risco e a criação de vinte novos pontos de apoio. Além disso, também foram instalados pluviômetros para melhorar o monitoramento climático.
“Eu acho que Nova Friburgo foi uma escola para o Brasil. Infelizmente teve que acontecer uma tragédia, para podermos agir. Hoje várias cidades têm sirene e criaram suas rotas de fuga dos locais de risco para os pontos de apoio”, pontua Mori.
Rua do bairro de Córrego D’antas em Nova Friburgo.
Foto: major Manoel Venâncio Filho/ Corpo de Bombeiros - RJ, 201
Por outro lado, a reconstrução da cidade foi manchada por escândalos de corrupção e pela falta de planejamento prévio. Investigações conduzidas pelo Ministério Público Federal (MPF), pela Controladoria Geral da União (CGU) e por duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) – uma na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e outra na Câmara de Vereadores de Nova Friburgo – revelaram irregularidades em contratos firmados sem licitação, favorecidos pelo decreto de calamidade pública, que dispensava a obrigatoriedade de processos licitatórios para agilizar as obras.
Os esquemas de corrupção ocorreram em âmbito municipal e estadual, envolvendo agentes públicos e privados. O ex-prefeito Dermeval Barboza Moreira Neto foi condenado por improbidade administrativa pela Justiça Federal e obrigado a devolver R$940 mil aos cofres públicos. De acordo com a “CPI da Tragédia”, realizada na Câmara de Vereadores do municípios, mais de 21 empresas se beneficiaram de parte dos R$22 milhões repassados pelo governo federal para reconstrução emergencial da cidade.
Além de Dermeval, no âmbito municipal também foram condenados José Ricardo Carvalho de Lima e Marcelo Verly de Lemos, ex-secretários de Educação do município, também por desvio de verba destinada à reconstrução da cidade. Em 2018, a ex-secretária de Saúde, Jamila Calil Salim Ribeiro, foi condenada a 23 anos de prisão por formação de quadrilha e desvio de verbas. Junto a ela, foram sentenciados os funcionários públicos José Antônio Nery e Idenilson Moura Rodrigues, além dos empresários Carlos Alberto Marzzano, Carlos Moacyr de Oliveira, Antônio Carlos Thurler e Eliasib Alves de Souza.
Ex-secretária de Saúde de Friburgo é condenada de novo por tragédia de 2011
Já no âmbito estadual, o MPF encaminhou o pedido de condenação para o ex-secretário da secretaria de Obras nos governos de Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, Hudson Braga. Ele, que cumpre pena na Cadeia Pública de Benfica, no Rio, foi condenado a ressarcir R$23 milhões desviados do orçamento de reconstrução da região serrana.
Secretaria responsável por obras em encostas da Região Serrana teve desvios de R$ 4 bilhões, diz MPF
A CPI, instaurada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, não apenas apurou responsabilidades, mas também elaborou um relatório final com 44 itens, entre sugestões, recomendações e propostas de projetos de lei. Entre as principais medidas estavam a criação de um centro de prevenção de desastres para coordenar ações e monitorar riscos em tempo real, a obrigatoriedade de que todos os municípios tenham uma Defesa Civil estruturada, o estabelecimento de um fundo estadual de calamidade pública para garantir recursos emergenciais e o mapeamento e desocupação de áreas de risco, com a criação de programas habitacionais que permitissem realocar moradores de locais vulneráveis.
Embora algumas dessas propostas tenham sido implementadas, como a criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) em julho de 2011 e do Plano Nacional de Gestão de Riscos e Respostas a Desastres Naturais (GRRD), muitas não saíram do papel. Essa inércia, somada aos desvios de recursos e à má gestão, comprometeu não apenas a recuperação de Nova Friburgo, mas também a capacidade de prevenção e resposta a futuros desastres.
O Presente e o Futuro de Nova Friburgo
Um estudo realizado pela Casa Civil do Ministério das Cidades, divulgado em 2024, revelou que o município está entre as 10 cidades brasileiras com mais áreas de risco. O levantamento foi realizado a partir de dados do Serviço Geológico Brasileiro, do Cemaden e do Atlas da Vulnerabilidade de Inundações, produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA). O mapeamento mostra que o município tem 33.660 pessoas vivendo em áreas suscetíveis a inundações, deslizamentos e enxurradas, o equivalente a cerca de 17% do total da população da cidade.
Para o doutor em Geografia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Artur Schausltz, a problemática da ocupação desordenada da cidade é fruto da desigualdade social. “As pessoas não ocupam áreas de risco porque querem, mas sim porque estão disponíveis. As áreas mais seguras, obviamente já estão ocupadas ou são terrenos muito caros aos quais as pessoas mais pobres não têm acesso. Esse processo de periferização de cidades é uma tônica do mundo subdesenvolvido, não é uma característica especial de Nova Friburgo. No entanto, quando isso acontece numa região serrana, essas áreas acabam, em algum momento, encontrando a ocupação de encostas que obviamente são mais suscetíveis a deslizamentos”, explica.
Doutor em geografia pela Uerj, Artur Schausltz, explica a relação da ocupação desordenada das cidades com os desastres.
De acordo com a Secretaria Municipal de Defesa Civil de Nova Friburgo, quando famílias são identificadas em áreas de vulnerabilidade, elas são encaminhadas à Secretaria de Assistência Social para avaliar a possibilidade de inclusão no programa de aluguel social, com o objetivo de conseguir moradias em locais seguros. No entanto, convencer essas famílias a se deslocar nem sempre é uma tarefa fácil.
Para o professor Francisco Dourado, a falta de um planejamento urbano e a concentração de distribuição de serviços básicos nos centros das cidades interferem diretamente na escolha de moradia. “As pessoas ocupam as áreas de risco que são próximas dos locais de trabalho, escolas de boa qualidade, postos de saúde melhores. Elas não vão para um lugar mais distante, que é mais seguro, principalmente por conta da falta de um transporte público de qualidade ”, explica.
A permanência dessas pessoas em áreas de risco, também pode ser relacionada a uma forte conexão afetiva com esses locais, um vínculo que vai além das questões materiais. Esse sentimento pode ser entendido pelo conceito de topofilia, desenvolvido pelo geógrafo cultural sino-americano Yi-Fu Tuan, que descreve o apego emocional das pessoas aos lugares que fazem parte de suas histórias de vida. São áreas onde elas cresceram, construíram laços de amizade, criaram suas famílias ou construíram suas casas com esforço próprio. São espaços que representam a identidade dessas comunidades, abandonar esses locais significa, para muitas pessoas, uma perda de memória e pertencimento.
O desafio do reassentamento dessas comunidades é agravado pela falta de planejamento adequado nos novos espaços oferecidos. Em Nova Friburgo, por exemplo, os moradores que foram realocados para o conjunto habitacional Terra Nova, com a localização distante do centro, falta de infraestrutura, aumento da violência e a ausência de serviços essenciais, têm ainda mais dificuldade de adaptação com relação aos seus antigos locais de moradia. Muitos se sentem desamparados ou isolados, o que, somado às condições precárias, os leva a retornar às áreas de risco de onde foram removidos.
“Mesmo que de fato essa pessoa perca materialmente a sua casa, e às vezes, até algum ente querido, é muito difícil a chance dela querer recomeçar a vida em outro lugar com o qual não tem nenhuma relação e que ela teria que desenvolver de novo do zero. É diferente de quando se desenvolve a afetividade com um espaço desde a infância ou desde a adolescência, que é uma coisa que gera marcas mais sólidas da relação com o espaço”, pontua o geógrafo.
Perto de completar 14 anos da tragédia que mudou a política sobre prevenção a desastres no Brasil, ainda resta a dúvida: Nova Friburgo está preparada para lidar com os riscos que permanecem?
Ruas no centro de Nova Friburgo, novembro de 2024.
Foto: Joana Tápea
Atualmente a secretaria da Defesa civil da cidade conta com uma equipe de 40 funcionários especializados em gestão e prevenção de riscos. Há também quatro viaturas operacionais 4x4 (com tração nas quatro rodas), duas para uso administrativo e uma motocicleta. De acordo com a pasta, encontra-se em tramitação na Câmara de Vereadores um Projeto de Reforma Administrativa que vai fortalecer ainda mais os quadros da secretaria.
Entre as estratégias de prevenção, a cidade implementou um sistema de alerta e monitoramento, com 36 sirenes distribuídas nas principais áreas de risco, além de outras 18 que estão em processo de licitação pelo governo do estado. A cidade também conta com 45 pluviômetros para monitorar o volume de chuvas e 70 pontos de apoio, preparados para oferecer suporte em casos de emergência.
Atualmente, o orçamento anual da pasta é de cerca de R$2 milhões, mas segundo a secretaria da Defesa Civil ainda é pouco. “Nosso orçamento melhorou, entretanto, ainda não é suficiente para arcar com todas as atividades e estratégias, principalmente, se levarmos em conta só o orçamento da nossa pasta, mas temos que considerar o orçamento da secretaria de Obras quando realizam intervenções estruturais de contenção e drenagem mitigando riscos em vários pontos de nossa cidade”.
Entre os Núcleos de Proteção e Defesa Civil (Nupedces) — grupos formados por moradores e voluntários — apenas um continua em funcionamento, no bairro de Amparo. De acordo com a pasta, a expectativa é que consigam implementar 15 novos núcleos, nos bairros de Riograndina, Ruy Sanglard, Jardim Califórnia, Duas Pedras, Terra Nova, Floresta, Lumiar, Campo do Coelho, Granja Spinelli, Mury, Cordoeira, Cardinot, Cônego, Cascatinha, Conquista e uma de profissionais especialistas.
No dia 27 de novembro deste ano, foi apresentada a 4ª edição do Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil (Plancon) de Nova Friburgo, que estabelece os protocolos que devem ser seguidos por órgãos, municipal, estadual e federal, responsáveis por respostas em situação de emergência, de acordo com suas responsabilidades e competências. Também foi apresentado um simulado de desocupação de área de risco e um simulado de mesa com os órgãos envolvidos no plano. São todas estratégias voltadas para prevenir possíveis emergências nesta época de chuvas intensas.
Memorial dedicado às vítimas do desastre em Nova Friburgo, 2024.
Foto: Joana Tápea
Para Dourado, a construção de uma cultura de redução de riscos no Brasil é fundamental para minimizar os impactos de desastres como o de Nova Friburgo. Além de instalar sirenes, enviar mensagens de alerta e criar pontos de apoio, é preciso criar ferramentas para que a população também compreenda o propósito dessas medidas e saiba como agir em situações de emergência. “Se um dia a gente tivesse uma cultura de redução de risco de desastres, que fosse 50% da cultura do futebol e carnaval que a gente tem no Brasil, não teríamos tantas mortes todos os anos,” pontua o especialista.
Neste ano, o Governo Federal está elaborando o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, que servirá como base para todas as secretarias de defesa civil do país. O documento pretende estabelecer diretrizes unificadas, priorizando a prevenção e o gerenciamento eficiente de riscos. A partir disso, cada estado ou município pode adaptar e criar seus próprios planos.