Quando o som de um apito preenche a madrugada silenciosa, os moradores de Córrego D’antas, um dos bairros centrais de Nova Friburgo, já estão em alerta. O aviso é dado por Edmo Alves Teixeira, vice-presidente da associação de moradores do bairro. O barulho estridente significa que a nascente da bacia do Córrego D’antas, a principal cabeça d'água da região, está com um volume maior que o esperado. O sistema de alerta a um possível desastre é rudimentar, mas eficaz. A comunidade unida, desenvolveu essa e outras estratégias para lidar com um trauma recorrente, engatilhado a todo sinal de chuva forte. A região do Córrego D’antas foi uma das mais atingidas da cidade em 2011. Nascido e criado lá, o construtor viu quando o córrego que dá nome ao bairro, se transformou em um oceano de lama. A chuva intensa já durava dias, “a pancada de chuva muito forte era um anúncio de que ia acontecer alguma coisa de errado”, recorda Edmo. Ele estava em casa com a família, uma residência mais afastada do rio, perto de uma encosta. Com a água subindo cada vez mais, ele e alguns vizinhos saíram para retirar os carros das ruas e impedir que fossem arrastados pela correnteza. A chuva não dava trégua; às onze horas da noite, o volume do rio começou a aumentar desenfreadamente. Nesse momento, a cidade inteira já estava sem luz. A única forma de iluminação nos arredores, era a de uma lanterna que Edmo guardava em casa. Preocupado, voltou para cuidar da família; “Vou me deitar aqui e descansar um pouco. Amanhã vai ter muito serviço pela frente”, falou para esposa, receoso. Às sete horas da manhã, a escuridão ainda cobria o bairro. A chuva continuava e Edmo levantou cedo. Ao olhar para baixo, o homem não viu mais o rio, ele agora era um mar de lama. O volume da água era tão grande, que casas próximas foram arrastadas rua abaixo. Uma das pontes que dava passagem para a rodovia de saída, também foi levada pela correnteza. A causa de tamanha fatalidade foi o deslizamento de uma barreira. O morro, já encharcado pela chuva que não abandonava a região há dias, se desprendeu e represou parte do rio. Impedido, por uma mistura de terra, pedras e troncos de árvores, a água arranjou um jeito de seguir seu curso. Sua força era tamanha que arrebentou a barreira e formou uma onda de lama devastadora. As casas ao redor de Edmo foram invadidas pelas barreiras. As outras próximas ao rio, foram invadidas pela lama. A casa do construtor ficou intacta. Com uma foice e uma corda, ele saiu para ajudar os vizinhos. O trabalho envolvia resgatar pessoas ilhadas nos telhados e tentar encontrar sobreviventes em meio aos destroços. Os moradores cavavam com ferramentas improvisadas ou até com as próprias mãos para tentar salvar vidas. Em meio ao choque de ver seu bairro destruído, Edmo encontrou forças para poder ajudar outras pessoas. Um amigo e a esposa tinham acabado de ter uma filha. Na madrugada, um deslizamento fez com que a casa ficasse pendurada no barranco. A família saiu às pressas e em segurança, mas não conseguiram pegar nada. Edmo se arriscou voltando lá para buscar algumas roupas para o recém-nascido. Em outra área de risco, ele conseguiu resgatar um medicamento de uso controlado de outro amigo que estava se recuperando. Sem conhecimento da gravidade do desastre no restante da cidade, os moradores de Córrego D’antas continuavam na luta contra o tempo para achar sobreviventes em meio às montanhas de lama. Durante as buscas, Edmo encontrou um amigo, que na rapidez do deslizamento não conseguiu escapar de casa. “É triste saber de tantas pessoas que se foram no mesmo dia. Eu cheguei no ponto de apoio e começaram a contar, fulano morreu, fulano morreu, fulano morreu”, relembra. Os deslizamentos na estrada bloquearam todas as saídas e entradas do Córrego D’antas. Alguns dias se passaram até que a ajuda conseguiu chegar ao bairro. A chuva persistia e o rio ganhava força. Com uma das pontes arrastada pela correnteza, não era possível passar de uma margem para a outra. Sem ajuda das autoridades, os moradores construíram uma ponte de emergência feita de cabos de aço e madeiras que um dia serviram como portas ou janelas para as casas, agora destruídas. Edmo foi o engenheiro do projeto, logo interditado pelos bombeiros por não oferecer a segurança necessária. “Eles querem interditar uma coisa que a gente construiu usando nosso suor e nossa inteligência. Eu tinha certeza que era segura para ser usada. Mas graças a Deus o impasse foi solucionado e a gente refez por duas vezes essa ponte de cabos”, relembra.
Reconstrução da ponte emergencial em Córrego D’antas. Nova Friburgo, 2011. Fotos: Acervo pessoalSem a liberação da estrada, o bairro ficou desassistido. Os moradores indignados com a falta de apoio fizeram um protesto para que a ajuda, que já estava em outros bairros, pudesse chegar lá. Organizados, levaram todos os entulhos que puderam achar e montaram uma barricada na estrada principal. Foi aí que Edmo tomou a frente e virou líder comunitário. Com funcionários do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), foi buscar duas retroescavadeiras que estavam fazendo a limpeza em outro bairro. Com isso, o Córrego D’antas poderia ter uma passagem livre para o centro da cidade. Levou tempo para o bairro se reerguer. Hoje quem caminha pelas ruas de paralelepípedo, ainda pode encontrar resquícios das casas que antes ali ficavam. Entre as construções que aguentaram a força da água e outras construídas ao longo desses quatorze anos, assomam terrenos vazios tomados por mato. Na rua de terra, em meio ao capim gordura que cresce, é possível ver uma pilastra das casas. Resquícios de histórias que foram arrastadas pela força da natureza.
Estrutura de algumas casas que foram afetadas pelos deslizamentos em Córrego D’antas. Foto: Joana TápeaO cotidiano do risco em Córrego D’antas No alto de uma construção, há alguns metros do rio, fica localizada a sirene. A estrutura, grande, é feita com uma série de alto-falantes. Sempre que acionada, os moradores já sabem que choveu um volume de água preocupante, o que significa perigo iminente de enchente e deslizamentos de terra. A partir do sinal, todos precisam deixar suas casas, com uma mochila de documentos e objetos importantes. No Brasil, o aviso por sirene virou uma medida de alerta para desastres a partir de 2011. O mecanismo de defesa foi instalado em algumas comunidades na cidade do Rio de Janeiro. Em Nova Friburgo, as sirenes que poderiam ter sido fundamentais naquela madrugada do dia 12, só foram instaladas após a tragédia.
Nova Friburgo possui 36 sirenes de alerta distribuídas entre os bairros. Foto: Joana Tápea
Para os mais de 2 mil habitantes de Córrego D’antas, o alto-falante ou as mensagens de texto enviadas pela Defesa Civil são os únicos alertas. Desde aquela fatídica madrugada, a insegurança ronda como um fantasma pelas ruas do bairro. Para lidar com ela, Edmo se filiou à Cruz Vermelha, onde desenvolveu os conhecimentos necessários para ajudar em casos de emergência. Para se manterem em contato, ele e outros moradores iniciaram um sistema voluntário de rádio amador. Uma outra estratégia de alerta, que não depende de telefone, luz ou internet. Dois anos após a tragédia, em 2013, a Secretaria Ambiental do Rio de Janeiro criou um plano de emergência para a região serrana do estado. O documento abrangia Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo e apresentava rotas de fugas, pontos de apoio, e um mapeamento dos recursos materiais e de pessoas nas comunidades em áreas de risco. O projeto também ganhou a parceria de pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), que durante 18 meses fizeram cursos de capacitação com os moradores voluntários. A partir disso, aconteceu a instalação dos Núcleos de Proteção e Defesa Civil (Nupdecs). Edmo foi um dos voluntários e lá aprendeu sobre assoreamento de rios e rotas de fuga. Com a ajuda do projeto, os moradores conseguiram ampliar os radioamadores na área e melhorar o monitoramento do rio. Receberam kits de emergência, com capas de chuvas impermeáveis, lanternas e apitos. Hoje em dia, a comunidade conta com câmeras instaladas na nascente do rio, para ajudar a monitorar o nível da água. A tecnologia foi instalada pela associação de moradores em parceria com a Organização Não-Governamental Friburgo Solidário. Quando chove muito, as pessoas que vivem mais próximas à nascente do rio entram em contato com Edmo para comunicar a situação. “Eu recebo o aviso via telefone, se não estiver funcionando é através do rádio. Assim eu consigo avisar a população”, explica. A partir desse monitoramento, eles também conseguem comunicar o nível de água para os moradores da cidade vizinha, Macuco, onde o rio deságua.
Câmeras de segurança ajudam no monitoramento do nível do rio. Foto: Acervo pessoal
"Com relação a inundação, eu não me sinto tão seguro. Eu tenho ferramentas caras aqui na oficina que podem estragar. A grande maioria das pessoas na inundação, consegue ser avisada e sair. Agora, quanto há um deslizamento, não. Quando está chovendo muito, a pessoa vai se abrigar e é pega de surpresa dentro da própria casa, vem uma barreira e destrói tudo”.Mas para Edmo, em algumas situações o rádio ou grupo de whatsapp não é suficiente para avisar a comunidade do perigo. É nessa hora que o apito se torna um grande aliado. A última vez que ele usou a estratégia de aviso, foi há mais ou menos quatro anos. Naquele dia a água chegou à varanda de sua oficina, que fica próximo ao rio. Quem ouviu o sinal, já estava ciente do que poderia vir. De lá para cá, a preocupação persiste. Para uma comunidade em área de risco, a chuva é sempre uma preocupação. Seja de madrugada ou de dia, os voluntários, assim como Edmo, estão sempre em alerta.