No dia anterior, Edneia Sarrapio não tinha reparado na chuva. Estava terminando de arrumar a mudança para a casa nova, uma construção bem planejada logo acima de onde morava. Naquele dia, contratou dois ajudantes para levar a máquina de lavar e a cama para o andar de cima, o resto ela mesmo faria. Morava no bairro de Córrego D'antas, com seu filho de seis anos e Nike, o cachorro da família. Edneia era costureira, trabalhava em casa produzindo roupas de tricô para vender. Quando anoiteceu, o cansaço da mudança a fez dormir cedo. A chuva já estava mais forte e uma grande quantidade de raios iluminava a noite. “Neia! Neia! Neia! Você tem corda?”, os gritos de desespero do vizinho a acordaram de madrugada. Desnorteada, levantou da cama e abriu a janela, a escuridão e o grande volume de chuva a impedia de enxergar qualquer coisa à sua frente. Tentou acender a luz, mas já não havia energia elétrica na cidade. A costureira guardava uma corda em um armário no segundo andar da casa. O vizinho precisava com urgência para fazer o resgate de uma senhora que teve sua casa alagada. O homem levou uma pequena lanterna para que Edneia pudesse achar o objeto. Os dois passaram pela porta da sala em direção a varanda onde ficava o armário – de repente, o som da chuva deu lugar aos estalos. O barulho era como se centenas de galhos e troncos de árvores estivessem sendo quebrados. “Neia corre!”, o vizinho gritou enquanto saía pela porta da sala levando a única iluminação do ambiente. Edneia foi logo atrás, sem poder enxergar em meio ao breu, e não viu quando uma das portas da sala voltou em sua direção e a atingiu em cheio no rosto. Ainda desnorteada pela pancada, conseguiu se segurar no portão de ferro quando uma grande onda de lama quase a arrastou. O morro no fundo do terreno cedeu e represou parte do rio. O volume de água era tão grande que estourou a barreira e formou uma onda devastadora. No primeiro momento, Edneia pensou que o telhado havia desmoronado. Desesperada, precisava chegar ao terceiro andar para buscar o filho e o cachorro que latia na escada. Com muito esforço conseguiu desviar dos galhos e troncos retorcidos do quintal e passar pelo portão. A lama era tão espessa que seus pés se afundavam no chão a cada passo. Enquanto isso, os vizinhos tentavam iluminar o caminho com as lanternas. Ao passar pela porta de casa começou a chamar pelo filho – os degraus até o terceiro andar pareciam infinitos e ela não ouvia nenhuma resposta. No quarto, Diogo havia acabado de acordar: “Calma mamãe, eu tô tentando achar meu chinelo”, explicou a criança enquanto tentava encontrar o calçado no escuro. Edneia o abraçou aliviada, o telhado de casa estava intacto. Nos dez anos em que morava em Córrego D'antas nunca tinha visto uma enchente como aquela. O volume do rio era impressionante, capaz de arrastar casas, carros e pessoas. Não se sentia mais segura ali, pegou o filho e foi se abrigar na casa de uma vizinha. Deixou o portão aberto para que Nike pudesse sair, mas o cachorro permaneceu sentado na escada. O rosto de Edneia latejava de dor pela pancada da porta; as pernas tinham arranhões causados pelos galhos e o entulho. Com cuidado conseguiu passar pela saída em meio às árvores e a lama. Assim como ela e o filho, outras famílias que viviam próximas ao rio, foram buscar abrigo na casa da vizinha, em uma região mais alta. As famílias se apertavam na varanda da pequena casa, enquanto a mulher trazia roupas secas para que as crianças pudessem trocar. Assustados, os moradores só enxergavam o cenário de destruição quando os raios iluminavam os morros.Um amanhecer escuro O dia amanheceu, mas ainda estava escuro. De manhã, Edneia conseguiu entrar em contato com o pai para avisar que estava bem – como o pai tinha problemas no coração, não quis preocupá-lo. Foi a última ligação que pode fazer. Daquele momento em diante não havia mais sinal de telefonia na cidade. Quando o dia clareou, eles puderam ver da varanda o estrago no bairro: muitas casas não existiam mais, árvores e outros entulhos preenchiam o que antes era a rua e a lama tomava conta de tudo. Na casa, Nike continuava esperando na escada, ansioso por um pouco de ração. Edneia foi dar uma olhada no estrago: o armário de madeira, onde mantinha os alimentos, tinha sido encharcado junto com outros móveis. O quarto onde estavam as máquinas e outros materiais de trabalho também foi inundado pela lama, quase nada dava para ser reaproveitado. A porta dos fundos foi despedaçada trazendo terra para dentro. Não havia energia, sinal de telefone ou sequer água para tentar fazer uma limpeza, tomar banho ou mesmo beber. Ao abrir a janela se deparou com um carro pendurado no telhado de uma casa vizinha.
Foto: major Manoel Venâncio Filho/ Corpo de Bombeiros - RJ, 2011
“Estava tudo destruído, carro, casa, poste, árvores. Você só ouvia gente gritando daqui, gente gritando dali, querendo ajuda para tentar aproveitar alguma coisa de casa. É uma vida inteira de luta, e quando a gente perde é muito difícil”.Os deslizamentos obstruíram as entradas e saídas do bairro, deixando os moradores sem acesso aos itens básicos. Assim que soube da situação, o irmão de Edneia pegou a moto que usava para fazer rally e conseguiu cortar caminho por uma trilha. Colocou em uma mochila, água, biscoitos, miojos e outros alimentos de fácil preparo. O irmão contou como o desastre havia afetado outros bairros da cidade e a aconselhou a ficar em casa, para evitar olhar para o rastro de destruição e as vítimas que ficaram pelo caminho. O caminho principal só foi liberado quatro dias depois, com isso a ajuda pode chegar ao Córrego D’antas. Mas, ainda era difícil fazer o preparo de alimentos pela falta de água e energia. Os moradores aproveitavam a chuva, que continuava a cair, para estocar água em baldes, latas e outros recipientes que encontravam. “Quem não passou por uma situação de catástrofe às vezes não consegue entender isso. O essencial naquele momento é água e alguma coisa que você possa comer rápido. Não adianta falar assim ‘ah por que você não fez uma fogueirinha para cozinhar? A chuva continuou por dias, tudo estava molhado e o chão cheio de lama”. A água e a lama haviam destruído quase todos os mantimentos que guardava. Sem ração em casa ou em qualquer outro lugar do bairro para comprar, Nike passou fome durante dias. Os biscoitos e outros alimentos rápidos que Edneia conseguia eram repartidos entre ela e o filho. “Foi muito difícil ver o meu cachorro que tinha duas refeições por dia, era bem tratado, de repente ficar três ou quatro dias sem comer nada. Aquilo me cortava o coração, mas eu não tinha nada para dar”, relembra. A ração para o cachorro chegou alguns dias depois, quando as estradas foram liberadas. Os voluntários iam para as ruas do bairro distribuir comida, água e roupas para as vítimas. No quintal, Edneia recebeu de uma mulher em um carro branco, um pacote de ração e não conteve as lágrimas: “imagina a minha alegria quando a mulher me deu um pacotinho de ração. Meu cachorro estava com muita fome. Ele era muito companheiro, guardião da minha casa e do meu filho. Eu estava muito sozinha com o Diogo, e ele um bichinho idoso virou um leão”, relembra emocionada.
Nike e Edneia na casa onde moravam em Córrego D’antas. Foto: Acervo pessoal
Depois da primeira noite, Edneia e o filho foram para a casa de uma outra vizinha. O ambiente era maior e acomodava mais pessoas, mesmo assim, ela se sentia incomodada. Decidiu então ir para um abrigo improvisado onde antes funcionava um galpão de armazenamentos de botijões de gás. Graças a um gerador, no local havia energia elétrica para tomar banho e um fogão para fazer comida. Edneia buscou em casa uma coberta, estendeu um papelão no chão do abrigo e deitou abraçada ao filho. Não conseguiu dormir direito, o terror daquela madrugada ainda a assombrava. Na noite seguinte, vencida pelo cansaço, adormeceu. Quando a ajuda começou a chegar, receberam colchões e outras doações. A costureira revezava os dias entre ajudar na separação das doações e ir para casa na tentativa de impedir que alguém saqueasse o que lhe havia sobrado. Assim que soube da situação da filha, o pai de Edneia foi buscá-la. Ele morava em um bairro no centro da cidade, que não foi tão afetado pela tragédia e assim teriam uma condição melhor de sobrevivência. Depois de uns dias na casa da família, Edneia resolveu voltar para o Córrego D’antas. O medo de ter a casa invadida e saqueada não a abandonava. Deixou o filho com os pais e montou um acampamento no quintal da casa. Conseguiu emprestado um pequeno fogão com gás, roupas limpas, comida e água. Com a companhia de Nike, ela começou o desafio de limpar e organizar a casa. A parte de trás do quintal, onde ficavam uma churrasqueira e um bambuzal, foi completamente destruída pela onda de lama. Com o passar dos dias um cheiro muito forte começou a incomodar. Assustada, a costureira parou os bombeiros que passavam na rua, informando sobre a situação. Poderia ser o corpo de alguma vítima arrastada pela correnteza? A intensidade do estrago no bairro e na cidade era tão grande que s bombeiros não davam conta de atender a todos os chamados. Alguns dias depois, descobriu que o forte odor era de corpos de cachorros, já em estado de putrefação, agarrados no que restou do bambuzal. Com a ajuda de um vizinho, ela conseguiu retirar as carcaças do quintal.A Reconstrução As ruas e as casas foram limpas pelos próprios moradores – reunidos tiraram os entulhos e parte da lama com pás, enxadas e o que pudesse ajudar. Edneia demorou muito tempo para poder organizar a casa e limpar o que podia ser reaproveitado. As fotos e lembranças de família ficaram sujas de lama, mas ela limpou papel por papel. Usava uma escova de dente velha para poder esfregar cada canto ou rejunte de azulejo impregnado de sujeira. O quarto onde guardava as lãs e máquinas para fazer as roupas foi todo afetado. Não havia o que salvar, tinha que jogar tudo fora.
Livro encontrado em meio a lama e destroços, bairro não identificado. Foto: major Manoel Venâncio Filho/ Corpo de Bombeiros - RJ, 2011
Na parte da frente do quintal estavam os troncos das árvores que um dia ficavam no alto do morro. No bairro, não havia gente suficiente para dar conta de todos os trabalhos, mesmo pagando, Edneia não conseguia encontrar alguém que pudesse cortar os enormes troncos que atrapalhavam a entrada de sua casa. Demorou um mês para conseguir tirar, com a ajuda do irmão. O trabalho em casa parecia nunca ter fim: “Com o tempo, eu colocava as coisas na chuva para limpar, depois limpava tudo novamente com água quente. Foram meses limpando, restaurando, pintando móveis, e eu usava isso como terapia, porque senão eu pirava”, relembra. Alguns espaços da casa demoraram mais para serem reconstruídos. O banheiro, no primeiro andar, foi completamente destruído. Por falta de dinheiro e tempo, Edneia só conseguiu finalizar a reforma no ano passado, 12 após a tragédia. Muitos vizinhos e conhecidos se mudaram do bairro por medo de um novo desastre. Outros tiveram suas casas demolidas por estarem em áreas de risco e foram realocados nos conjuntos habitacionais feitos pelo Governo Federal. Edneia teve que lutar na justiça para que sua casa não fosse uma delas. Com a comprovação de que o imóvel era registrado há mais de 50 anos, a costureira conseguiu permanecer lá por mais algum tempo. No entanto, o sentimento de melancolia e as lembranças de horror daquela noite, a acompanhavam pelos cômodos.“Depois que acabou a enchente, eu entrei na minha casa, deitei no chão, olhei pro lustre na sala e comecei a chorar. Eu pensei, caramba eu tinha acabado de comprar, contratei um pedreiro para colocar no lugar para mim. Eu olhei e pensei, para que eu comprei isto? Uma coisa mais simples resolveria o meu problema. De um dia para o outro, as coisas que eram importantes para mim, não significavam mais nada”.
Casa em que Edneia e Diogo moravam em Córrego D’antas. Foto: Acervo pessoal.
Com o restabelecimento gradual da normalidade, Edneia se voluntariou para dar aulas artísticas na escola do filho. As escolas ainda não estavam funcionando, mas as mães precisavam deixar os filhos para poderem voltar a trabalhar. Edneia, que tinha formação em pedagogia, ensinava as crianças a pintar e desenhar. Outras mães, também voluntárias, davam aulas de informática, ciências e outras áreas. Para ela, o projeto também era uma forma de distração. Depois de um ano, ela e o filho se mudaram para Rio das Ostras, na região dos lagos do estado. A casa foi reformada e alugada, mas as lembranças daquela madrugada de caos ainda permaneciam com Edneia. Um dia se viu no meio da rua de pijama, desorientada, pensando ter voltado para o dia 12 de janeiro. As noites em claros perduraram por muito tempo, tanto que teve que começar a tomar remédios controlados para conseguir dormir e acordar. Edneia se sentia perdida na cidade e em si mesma, a tristeza tomava conta de sua vida.“Eu mudei a minha cabeça, sempre tive vontade de morar perto do mar. Vim correr atrás dos meus sonhos, dar um ressignificado para a vida”.Seu filho, Diogo, também era assombrado pelas memórias do desastre. “Toda vez que ele via um saco preto de lixo grande, não queria passar perto. Ele falava ‘mamãe tem gente morta ali’; ele tinha só seis anos”. A chuva se tornou um sinal de alerta e ansiedade para eles: toda vez que chovia forte Edneia e o filho não conseguiam dormir. Demorou um tempo para que os dois pudessem se sentir confortáveis na casa nova. Foi preciso paciência para recomeçar a vida em outro lugar. A família e muitos amigos de Edneia ainda moram em Nova Friburgo. Apesar de gostar da cidade e do clima ameno, afirma que não voltaria a viver lá. Quatorze anos depois, a cidade se reergueu, a casa foi reformada, o bambuzal no quintal já está grande novamente. “Com o tempo a natureza vai se restaurando, mas o que não se restaura é o coração da gente, o sentimento de perda. Não é só uma questão de perda financeira, é um sentimento de perdas humanas. Nós não fomos avisados, não existia sirene tocando. Muita gente foi pega desprevenida, dormindo à noite. Dormindo porque a labuta é grande, a gente fica cansado, cai no sono e depois simplesmente não acorda mais”.