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Jaqueline
e André
Por volta das cinco horas da tarde do dia 11 de janeiro, Jaqueline Domingues da Silva foi buscar a filha mais nova, Clara, na colônia de férias. Depois encontrou o marido, André Bringuenti, para fazer as compras da semana. O mercadinho ficava próximo da casa onde moravam, mas com previsão de chuva para os próximos dias, decidiram comprar tudo que precisavam para evitar novas saídas.
A família era natural da cidade do Rio de Janeiro, onde morava no bairro do Grajaú, na zona norte. Eles gostavam do lugar, mas queriam fugir do ritmo acelerado do grande centro e encontrar mais tranquilidade no interior. Nova Friburgo, na serra, parecia a escolha ideal. Em 2001, se mudaram para um sítio na comunidade rural de Galdinópolis, com os dois filhos que tinham na época, Jamile e Iago. No entanto, a distância logo os fez reconsiderar. Decidiram se mudar novamente, mas agora para o centro da cidade, onde seria mais fácil organizar a rotina das crianças e facilitar o acesso à escola e outras atividades. Desde então, viviam em uma casa alugada por uma família de amigos, no bairro de Duas Pedras.
O casal de artesãos produzia brindes e bolsas personalizadas em um ateliê anexo ao chalé onde moravam. Naquela noite, André e os três filhos foram dormir cedo, enquanto Jaqueline permaneceu trabalhando. Ela preferia o silêncio e a calmaria para produzir melhor, mas naquela noite, algo a incomodava: a chuva forte, ao bater no telhado de amianto, produzia um barulho ensurdecedor.
Sem conseguir se concentrar,  decidiu ir dormir. O chalé era uma construção antiga, com mais de trinta anos. Apesar de estar em um bairro central, era cercado pela natureza, próximo a uma encosta coberta por árvores e mato. Na casa de baixo moravam os proprietários do imóvel, as duas famílias eram muito próximas, “eles eram mais do que amigos, eram nossa família também”, lembra Jaqueline.
A uma hora da madrugada, Jaqueline acordou assustada com um barulho que parecia vir do lado de fora do quarto. Perguntou ao marido se ele havia escutado; “Deve ser gato ou cachorro”, respondeu André. Incomodada com a situação, ligou a lanterna do celular para verificar o que estava acontecendo. Os três filhos já estavam acordados e esperavam, com medo, no corredor. O mais velho, Iago, insistiu em ir com a mãe ver o que era do lado de fora. A chuva, que à tarde era tímida, agora estava intensa, o volume de água era tão grande que o guarda-chuva não conseguia suportar o peso.
Do lado de fora, encontraram os amigos, que, preocupados com o barulho, também saíram para verificar. Uma pequena barreira havia descido pelo quintal, encostando na casa, próximo ao local onde ficava uma piscina de plástico. Nada foi danificado, mas acendeu em todos um alerta de que algo estava errado. Para se protegerem da chuva forte, a família sugeriu que Jaqueline e Iago desviassem o caminho, passando pela casa de baixo.
Naquele momento, a cidade inteira já estava sem luz e o sinal de telefonia também havia desaparecido. Jaqueline iluminava o caminho até a casa com a lanterna do celular. Haroldo, amigo e dono do chalé, conseguiu ligar para a mãe antes de perder o sinal do telefone. Ele era dono de uma loja de eletrônicos no centro da cidade, que estava alagando — algo que nunca havia acontecido naquela área. Com medo de perder a mercadoria, avisou à mãe que iria até a loja para subir os materiais. “Você já olhou pela janela?”, perguntou Haroldo a Jaqueline. “Não, o que houve?”, respondeu.
Era madrugada, mas os raios iluminavam os arredores. Da janela, eles conseguiam ver os morros deslizando a cada clarão que cortava o céu. Parecia que o estrondo dos trovões fazia a terra, já encharcada pela chuva de dias, estremecer e desmoronar. A avenida que dava acesso ao centro da cidade não existia mais; o rio Bengalas havia tomado conta de tudo. O volume de água era tão grande que alcançava a altura de um outdoor publicitário na rua.
De repente, Jaqueline ouviu um estrondo muito alto. A barreira que antes havia parado perto da piscina se uniu a um novo deslizamento, levando consigo toda a garagem. Nesse momento, a filha mais velha, Jamile, estava com a pequena Clara no colo, conversando com os vizinhos na casa de baixo. Jaqueline preocupada, chamou todos para cozinha, julgando ser o lugar mais seguro.
Clara sentiu sede, mas, como não costumavam deixar água na geladeira, André decidiu buscar um copo na parte de fora. Tudo aconteceu rápido demais. Os amigos se preparavam para subir ao cômodo, e André virou o corredor, pronto para retornar à cozinha. Foi então que todos ouviram um estalo vindo da estrutura da casa. Não houve tempo para gritar. A barreira cedeu, e eles não viram mais nada.
Não houve um estrondo forte ou qualquer barulho de aviso; o morro deslizou silenciosamente, preenchendo a casa de baixo e destruindo a de cima, como se fosse uma maquete. Apenas a cozinha permaneceu intacta. Jaqueline olhou ao redor e viu os três filhos, mas André não estava lá. Ele não conseguiu chegar a tempo. “André! André! André!”, gritou, desesperada.
No exato momento em que a barreira desabou, André estava prestes a entrar na cozinha. A estrutura da casa cedeu, mudando de direção abruptamente. Um pedaço da parede atingiu sua cabeça, abrindo um corte profundo na testa. Ele desmaiou por alguns instantes e, ao recobrar a consciência, ouviu os gritos desesperados de Jaqueline. Cercados por lama e destroços, a família buscava uma brecha para escapar. No meio do caos, os gritos de socorro dos amigos, que não conseguiram sair a tempo, ecoavam pelo cômodo destruído. “Vamos procurar ajuda”, disse Jaqueline. Feridos e sem iluminação, nada mais poderia ser feito ali. Assim que conseguiram sair, um terceiro deslizamento terminou de soterrar a casa.
A chuva continuava forte e a grande quantidade de raios assustava. “Não morremos quando a casa desabou, mas vamos acabar sendo atingidos por um raio", pensou Jaqueline, com um aperto no peito. Não era possível sair pela avenida principal, o rio havia invadido tudo. Desesperados e sem opção, decidiram  se abrigar em uma casa no alto do morro. O terreno tinha uma grande cerca de arame e foi com muita dificuldade que conseguiram passar, desviando das cascatas de água que surgiam no caminho. Jaqueline deu impulso para que todos passassem por cima do grande portão da casa. Às quatro horas da manhã, sentados na varanda, podiam ouvir os gritos de socorro e desespero das pessoas nas áreas próximas.
Exaustos, ficaram ali esperando a chegada do resgate. Iago e Jamile, não tinham ferimentos graves, apenas algumas escoriações causadas pela cerca de arame. Mas, o ferimento na testa de André não parava de sangrar –  com um pedaço de tecido improvisaram um curativo para estancar o sangue. Jaqueline cortou o dedo e tinha escoriações pelo corpo. Clara foi a mais ferida: seus pés estavam cortados, perto dos tornozelos. Na adrenalina do momento, nenhum deles sentiu dor.
Às sete horas da manhã a chuva forte parecia impedir o sol de iluminar. Algumas pessoas passavam pela rua e eles gritavam por ajuda, mas era impossível acessar a casa onde os amigos estavam. Às dez da manhã o socorro chegou. Como o terreno estava instável, os bombeiros não puderam procurar por sobreviventes. O volume do rio ainda não tinha diminuído e para atravessar a avenida usaram uma balsa, com a água marrom de lama e destroços batendo na altura do peito dos bombeiros. 
Nessa hora, a dor dos ferimentos começou a se intensificar. A família de André e Jaqueline foi  levada diretamente ao hospital público da cidade, o Raul Sertã. O local já estava tomado por voluntários — estudantes de medicina e enfermagem que, cientes da gravidade da tragédia, se prontificaram a ajudar. Com o primeiro andar do hospital alagado, os pacientes precisaram ser realocados para áreas mais altas e seguras. No início, havia poucas pessoas, mas a situação logo mudou. Um deslizamento atingiu o hospital particular da região, e os pacientes estavam sendo transferidos para o Raul Sertã.
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Parte do hospital Municipal Raul Sertã também foi comprometida pela chuva. 
Foto: major Manoel Venâncio Filho/ Corpo de Bombeiros - RJ
André foi encaminhado para a área de sutura, onde trataram o ferimento em sua testa. Sem recursos para exames detalhados, não foi possível realizar um raio-x. Após o curativo, foi levado de cadeira de rodas até a capela do hospital. Sentado sozinho observava o vento bater nas portas e janelas, atormentado com o pensamento de que a estrutura poderia desabar. Sua casa, com três muros de contenção de um metro de largura não suportou a força da tragédia. Em menos de 40 minutos o silêncio da capela foi preenchido com a chegada de outros sobreviventes que aguardavam cuidados.
Jaqueline e Iago ficaram na ala de sutura para cuidar dos ferimentos, enquanto Jamile acompanhava Clara, imediatamente transferida para a sala de cirurgia. O impacto do deslizamento destruiu os tendões dos pés da menina, exigindo uma cirurgia de reconstrução. Com a escassez de recursos no hospital, os médicos recomendaram que um procedimento mais detalhado fosse feito posteriormente, quando a situação se normalizasse, já que o ferimento poderia afetar os movimentos da criança. Clara ficou vinte dias sem poder caminhar, mas se recuperou bem e não precisou refazer a cirurgia.
O hospital era um dos únicos lugares da cidade com energia elétrica, graças ao gerador. Lá, a família pode perceber a dimensão do desastre com os noticiários na televisão mostrando o cenário de destruição em toda a região serrana. O casal ficou três dias no hospital acompanhando a recuperação de Clara, enquanto Jamile e Iago se abrigaram na casa do namorado da menina, no bairro de Paissandú, no centro da cidade. No hospital, os pais ouviam os bombeiros alertando as pessoas a evitarem andar pelas ruas. “A gente ficou sem saber se nossos filhos tinham conseguido chegar em um lugar seguro”, relembra Jaqueline. Após três dias no hospital, a família foi se abrigar na casa do irmão de André.
Os pais de Jaqueline moravam próximos à estrada que liga o centro de Nova Friburgo ao bairro de Lumiar. Sem sinal de telefonia, não conseguiram entrar em contato para dizer que estavam bem. Preocupado, o casal decidiu pegar emprestado o carro do irmão de André para ir até lá. Com o racionamento de produtos, a gasolina era dividida entre a enorme fila de carros que se formava nos postos. Cada pessoa podia abastecer somente entre dez e vinte reais. Jaqueline e André tentaram chegar ao destino, mas era impossível tal a quantidade de deslizamentos que bloquearam o caminho.
Com a repercussão do desastre na mídia nacional, os familiares da artesã, que moravam na capital, se mobilizaram para ir resgatá-los. O tio e mais alguns parentes subiram a serra em um pequeno carro e foram até o chalé. Sem informações sobre a segurança da família, decidiram ir ao hospital. Com a recuperação do sinal de telefonia, dias depois da tragédia, Jaqueline conseguiu entrar em contato com eles. Em um pequeno Gol, as nove pessoas da família se espremeram para descer a serra rumo à capital. Clara, ainda se recuperando da cirurgia, ficou por cima de todo mundo no banco de trás, pois não podia mexer as pernas. 
Assim que a energia elétrica retornou na cidade, o pai de Jaqueline soube a dimensão da tragédia. Preocupado, pegou uma moto emprestada para passar por um caminho alternativo. O trajeto que normalmente demoraria uma hora, se transformou em seis, graças à chuva e a quantidade de lama no caminho. Neste mesmo dia, os moradores do centro da cidade foram vítimas de uma notícia falsa. Um boato de que uma possível represa havia estourado e iria inundar as ruas, despertou a histeria na população já traumatizada pela tragédia. Enquanto o pai de Jaqueline tentava passar pelo centro, uma multidão de pessoas corria desesperada em sentido contrário.
Ao chegar no chalé, ele se desesperou ao ver o cenário de destruição. Onde antes ficava a casa da família, agora era só um monte de lama e entulho. Tito, o pai de um dos meninos que morava na casa, estava lá: “Sua família saiu e está bem. A minha está toda aqui embaixo”, falou para o pai de Jaqueline. Foram preciso cinco dias de muito trabalho para resgatar os corpos das quatro pessoas que moravam no chalé de baixo. Com o terreno instável e a grande quantidade de terra, foi necessário usar uma retroescavadeira para encontrar a família. A volta para a serra
Após a tragédia, André e Jaqueline decidiram retornar de vez para a capital. Receberam muitas doações de parentes e amigos que ajudaram a reconstruir a vida. Do antigo chalé queriam recuperar poucas coisas: o álbum de fotos, uma boneca e o xale que a avó de Jaqueline havia feito. As regiões atingidas eram alvo de saques, pessoas aproveitavam as casas desabitadas e destruídas para pegar o que tinha sobrado de valor. Durante dias, os vizinhos vigiavam os escombros do chalé para impedir que os pertences fossem levados, mas para Jaqueline tudo que ainda havia por lá deixou de importar.
Os vizinhos conseguiram recuperar as fotos e uma bicicleta de Clara. Limparam os pertences e arrumaram o que sobrou da varanda, mas o xale da avó de Jaqueline nunca foi encontrado. Tempos depois, o terreno ainda era uma área de risco e para chegar até onde ficava a casa foi preciso improvisar uma ponte com madeiras e até com a velha prancha de surf de André. Em meio aos destroços, Jaqueline avistou a boneca de Clara – com uma corrente humana conseguiram resgatar o brinquedo. Nada mais pegaram de lá.
“Eu não tenho lembrança de nada que ficou perdido lá. Então nada material fez falta para a gente. Ainda bem, porque seria muito mais dolorido.” relembra André. Em 2015, a família se mudou novamente para Nova Friburgo, dessa vez para um sítio na região de Lumiar. Hoje, não voltariam a viver no centro da cidade. O trauma da tragédia ainda é despertado a todo sinal de chuva forte. “Hoje eu faço um bate e volta no centro de Friburgo. Eu não consigo me sentir bem lá. Não é medo, é um incômodo. Eu quero só chegar, fazer o que tem que ser feito e vir embora”, desabafa Jaqueline.
A área onde ficava o chalé não pode mais ser habitada. Com o tempo se transformou em uma grande floresta. Um tempo depois, o casal teve acesso ao mapeamento do deslizamento no local. A parte de cima do terreno havia sido vendida anos antes e o novo proprietário desmatou a área para criação de animais, deixando apenas uma parte superficial com poucas árvores na frente. Sem a floresta, que fazia o papel de segurança da encosta, o morro despencou levando árvores, pedras e tudo que tinha pela frente. Naquela área, a casa de André e Jaqueline foi a única que caiu.
seguinte
a tragédia
Edmo
Edneia
Jaqueline e André
Simone
A Reconstrução
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