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Sob o peso do céu: a tragédia na serra
Era uma terça-feira, 11 de janeiro de 2011, uma chuva fina caía sobre a região serrana do Rio de Janeiro. Apesar do tempo úmido, o ar estava quente, clima típico de verão. Pouco depois das nove horas da manhã, o tenente-coronel Roberto Robadey, então coordenador da Defesa Civil do município de Nova Friburgo, se preparava para uma reunião com o secretário de Planejamento da cidade, Angelo Augusto Jaquel Jr. O encontro era mais uma tentativa de transformar a coordenadoria da Defesa Civil em uma secretaria municipal – um passo para enfrentar os desafios que o período de chuvas sempre traz à região.
Ao sair de casa, Robadey parou na calçada e observou o tempo. Com mais de 25 anos de experiência no corpo de bombeiros, sentiu que algo não estava certo. A chuva constante carregava um presságio que ele ainda não podia prever. Enquanto a cidade seguia sua rotina, o desastre começava a se anunciar. Preocupado, checou a previsão do tempo no celular – já havia chovido mais de 60 milímetros, em menos de duas horas o esperado era que chegasse ao volume crítico de 80 milímetros. Era preciso agir rápido.
Desmarcou a reunião com o secretário, trocou de roupa e seguiu para a sede da Defesa Civil. A primeira providência foi avisar o chefe do executivo em exercício, o vice-prefeito Dermeval Barbosa Moreira Neto, informando que seria necessário emitir um alerta para a população. Em seguida, acionou a Rádio Friburgo, um importante veículo de comunicação da cidade. Às 10h26, a Defesa Civil publicou uma mensagem nas redes sociais, avisando sobre o estado crítico do volume de chuvas.
A ação executada por Robadey estava alinhada ao chamado Plano Verão, que com recursos financeiros reduzidos, havia identificado mais de 40 áreas de risco em toda a cidade. As 35 lideranças comunitárias dessas regiões foram contatadas, com a orientação de que moradores em áreas vulneráveis deveriam deixar suas casas imediatamente.
Às quatro horas da tarde, o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil receberam o primeiro chamado: um prédio havia desmoronado no bairro de Olaria. O então comandante do Corpo de Bombeiros, coronel João Paulo Mori, foi ao local com sua equipe para realizar buscas, acompanhado por Roberto Robadey. Como não houve vítimas fatais, o trabalho no local foi mais burocrático. Mori decidiu retornar para casa, mas permaneceu atento às notícias e pediu que o acionasse caso algo grave ocorresse. 
A partir das nove horas da noite, a chuva se intensificou, e novos chamados começaram a chegar ao Corpo de Bombeiros. O coronel Robadey, acompanhado pelo subcomandante dos bombeiros major Glaucius, saiu para atender uma ocorrência: uma mulher havia sido arrastada pela enxurrada. Enquanto isso, em casa, o comandante Mori estranhava a ausência de ligações. Com a chuva intensa, ele esperava ser acionado a qualquer momento, mas, depois de algum tempo sem notícias, decidiu descansar.
Por volta das onze horas, Mori tentou contato com o quartel novamente, mas não conseguiu resposta — o sinal de telefonia já havia caído em toda a cidade. Enquanto isso, Robadey e Glaucius enfrentavam outra adversidade: ficaram ilhados pela cheia do Rio Bengalas em um ginásio no centro. Sem luz ou comunicação, permaneceram presos até às sete horas da manhã seguinte, alheios à dimensão da tragédia que havia transformado a cidade em um cenário de destruição.
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O olho do furacão
Localizada na parte central do estado, a região serrana do Rio de Janeiro é composta por 14 municípios, sendo os principais Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis, somando mais de 800 mil habitantes. Possui um clima subtropical de altitude, com invernos secos e verões com temperaturas amenas. A região é um grande polo comercial agrícola e industrial do estado e recebe milhares de turistas ao longo de todo ano, atraídos pelo clima ameno e pelas belas paisagens. Por suas características geológicas, a região é mais suscetível a desastres naturais, já que está localizada na Serra do Mar, uma área de montanhas com rochas cobertas por uma fina camada de terra, caracterizada pelo bioma Mata Atlântica. O solo instável e as encostas íngremes aumentam o risco de deslizamentos, especialmente no verão, período marcado por chuvas intensas.
Nos dias 11 e 12 de janeiro de 2011, a chuva que caiu em toda a região foi devastadora. Na época, a cidade de Nova Friburgo contava com quatro pluviômetros – instrumentos meteorológicos que coletam e medem a quantidade de chuva que cai em um determinado local e período de tempo, De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento de Desastres e Alertas Naturais (Cemaden), “a quantidade de água captada é mostrada em milímetros (mm). Uma chuva de 1 mm por minuto, é equivalente a 1 litro de água por minuto em uma área de 1 metro quadrado (m2). Por exemplo, se sua casa tem um telhado com 10 metros quadrados e após uma hora de chuva o pluviômetro marcar 20 mm, quer dizer que cerca de 200 litros foram despejados sobre sua casa na última hora.” 
Os pluviômetros estavam estrategicamente distribuídos no município para monitorar o volume de precipitação. A estação Ypu, por exemplo, chegou a registrar 222,8 mm em apenas 24 horas, com um pico de 61,8 mm concentrados em uma única hora à meia-noite. A estação Sítio Santa Paula registrou um acumulado de 240 mm no mesmo período, com acúmulo mensal de 573 mm. Em 24 horas, caiu sobre a cidade o volume de chuva esperado para todo o mês de janeiro.
O grande volume de chuva pode ser explicado pela presença da Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), um fenômeno climático recorrente durante o verão brasileiro. De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o ZCAS é um corredor de nuvens que corta o Brasil, desde o norte até o sudeste. O sistema ocorre quando ventos quentes e úmidos da Amazônia encontram ventos frios vindos do sul, formando uma faixa de nuvens que pode permanecer estacionada por até dez dias, provocando chuvas intensas.
O que é a ZCAS?
Professor e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Desastres (Cepedes) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Francisco Dourado explica porque a região é mais suscetível a desastres.
As chuvas sobre a região tiveram mais de 32 horas de duração, provocando enchentes que varreram do mapa, casas, carros, árvores e pedras. O relevo desnivelado da região e o solo já saturado por chuvas anteriores contribuíram para milhares de deslizamentos de terra. Em diversas áreas, as avalanches caíram nos rios, causando uma espécie de represa. Com o grande volume de água, ondas de lama e detritos ganharam força e devastaram as áreas próximas.
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Sem saber a dimensão do desastre, os moradores seguiam a rotina.
Foto: major Manoel Venâncio Filho/ Corpo de Bombeiros - RJ, 2011
De acordo com o Relatório Geológico elaborado pelo Departamento de Recursos Minerais (DRM) do Estado do Rio de Janeiro, somente na cidade de Nova Friburgo, aconteceram mais de três mil deslizamentos. O estudo aponta que as avalanches de terra chegaram até 180 km/h, tornando praticamente impossível a fuga de moradores. Plantações e áreas urbanas foram devastadas pelos detritos dos deslizamentos e enxurradas.
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Dados apontam três mil deslizamentos somente em Nova Friburgo.
Foto: Manoel Venâncio Filho/ Corpo de Bombeiros RJ
O megadesastre afetou sete municípios da região serrana, totalizando 918 mortes, mais de 99 desaparecidos e cerca de 35 mil desabrigados e desalojados. De acordo com o censo do IBGE de 2010, na região afetada viviam mais de 700 mil pessoas, sendo cerca de 650 mil na zona urbana. A Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro calculou que mais de 304 mil moradores foram afetados pela catástrofe.
Nova Friburgo foi a cidade mais atingida, principalmente em sua área urbana. No total foram 427 vítimas fatais e milhares de desalojados e desabrigados. A destruição material inclui milhares de residências e infraestruturas essenciais, como pontes, estradas e hospitais. Serviços de energia elétrica, telefonia e abastecimento de água foram interrompidos, afetando toda a cidade. As equipes de buscas tinham que operar sem nenhum sinal de telefone e internet.
Para o professor e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Desastres (Cepedes) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Francisco Dourado, as questões geológicas e climáticas, aliadas à ocupação desordenada da região, potencializaram os danos. “Geralmente, as pessoas tendem a ocupar as regiões mais planas, elas são áreas de sedimentação, planícies aluvionares das drenagens. Então, sempre que há uma elevação do nível da água, ali é a primeira área a ser inundada”, explica o especialista.
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A economia
do desastre
A tragédia de 2011 foi classificada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o oitavo maior deslizamento do planeta nos últimos cem anos. Além das perdas humanas, o desastre influenciou profundamente, de forma negativa, a economia da região. O relatório de perdas e danos do Banco Mundial calculou um prejuízo de cerca de R$4.8 bilhões – 46% desse valor corresponde aos danos diretos causados pelas inundações e deslizamentos, como a destruição de casas, estradas e instituições. Enquanto 54% do montante foram estimados em perdas causadas pelos impactos indiretos da tragédia.
Cerca de R$2.6 bilhões (58%) foi o prejuízo no setor social, principalmente na área habitacional. Esse valor expressivo é reflexo do alto custo nas obras de contenção de encostas e outras estratégias para diminuir a vulnerabilidade da região. Além disso, houve a necessidade de realocação e reassentamento do grande número de  famílias desabrigadas pela tragédia. Algumas áreas como saúde e educação não entraram na estimativa, por falta de dados.
O setor produtivo, que envolve agricultura, indústria, comércio e turismo, também foi gravemente afetado. Segundo o relatório, o valor chegou a R$896 milhões. Já no setor de infraestrutura, que engloba o transporte, água e saneamento básico e comunicação, as perdas e danos somaram um valor total de R$1 bilhão. O principal custo ocorreu pela perda e necessidade de reconstrução de estradas, pontes e rodovias destruídas pelas enxurradas e deslizamentos. A falta de funcionamento dessas vias de transporte, interferia em outros setores como agricultura e transporte.
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Tragédia anunciada
Entre maio de 2006 e junho de 2007, Nova Friburgo elaborou o Plano Municipal de Redução de Riscos em parceria com o Serviço Geológico do Brasil (CPRM). O documento foi desenvolvido no Programa de Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários, do Ministério das Cidades, e firmado entre a Prefeitura e a Caixa Econômica Federal. 
O objetivo principal era mapear as áreas de risco na cidade, oferecer referenciais técnicos e subsidiar políticas públicas voltadas à prevenção de desastres. Além disso, o plano apresentava estratégias estruturais, como a construção de drenagens e muros de contenção, além de capacitar equipes técnicas municipais para o mapeamento e gestão de riscos.
O relatório era baseado em quatro pilares definidos pela ONU, em 1991, para a gestão de desastres naturais: identificação e análise de riscos, planejamento e execução de intervenções, monitoramento contínuo das áreas vulneráveis e capacitação da população para ações preventivas e de autodefesa. Para isso, o plano analisou as características de clima, relevo e geologia da região, aproveitando dados do mapeamento realizado em 2003 pela Coordenadoria Municipal de Defesa Civil (Comdec), que já havia identificado dez áreas críticas de deslizamentos e inundações.
Os estudos concluíram que os assentamentos precários em Nova Friburgo, em sua maioria, eram formados por moradias construídas em terrenos de alta declividade, especialmente em encostas de morros. Algumas comunidades, como Vilage, Floresta, Lazareto e Barroso, expandiram-se em áreas com drenagem central inadequada, agravando a vulnerabilidade das construções. O plano detalhava cerca de cinco mil pessoas vivendo em áreas de risco, com ações preventivas orçadas em R$17 milhões.
Cada área de risco foi descrita no relatório com recomendações específicas, hierarquia de prioridades e valores estimados para a implementação das medidas. Entre as recomendações estava: a construção de muros de contenção, obras de drenagem superficial, entre outros. O relatório ainda apresenta que a saída para casos extremos seria investir em medidas chamadas "não estruturais". Essas ações incluem estratégias como a evacuação preventiva de moradores que vivem em áreas de risco antes que o desastre aconteça.
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Atualmente mais de 30 mil pessoas ainda vivem em áreas de risco em Nova Friburgo.
Foto: Manoel Venâncio Filho/ Corpo de Bombeiros RJ, 2011
Neste mesmo período, a cidade também participou da construção de sua Agenda 21, um documento estratégico de planejamento sustentável criado na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992. As Agendas 21 são planos de ação elaborados por diferentes comunidades para promover o desenvolvimento sustentável, considerando aspectos sociais, econômicos e ambientais.
Na cidade, o processo incluiu um fórum de capacitação com lideranças comunitárias, reunindo cerca de 200 participantes. O diagnóstico socioambiental realizado nesse contexto identificou áreas de risco, incluindo zonas sujeitas a escorregamentos, ocupações irregulares em encostas, loteamentos clandestinos ou aprovados sem os devidos estudos técnicos, além de regiões vulneráveis à erosão e queimadas.
Com base nesse trabalho, em 2010, foi elaborado o Plano de Ação para o Desenvolvimento Sustentável de Nova Friburgo. O projeto previa recursos provenientes do Fundo Nacional de Meio Ambiente, mas, até o final daquele ano, os valores não haviam sido liberados, comprometendo a implementação das medidas propostas.
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O papel da Defesa
Civil na cidade
Em 2008, o orçamento anual da Coordenadoria da Defesa Civil de Nova Friburgo era de apenas R$145 mil. Na época, o coronel Roberto Robadey, então comandante do Corpo de Bombeiros, participou de uma palestra na Câmara de Vereadores e alertou sobre a necessidade urgente de aumentar esse orçamento para os anos seguintes. No entanto, em vez de aumentar, os recursos destinados à Defesa Civil foram reduzidos para apenas R$35 mil anuais.
Em 2009, Robadey assumiu a Coordenadoria da Defesa Civil, enfrentando o desafio de gerenciar uma cidade com mais de 180 mil habitantes e um orçamento extremamente limitado. “Havia promessa de que iria se investir na Defesa Civil, o que não chegou a acontecer. Diziam: 'Ah porque esse orçamento foi feito pelo prefeito anterior, mas no ano que vem a gente vai fazer'. No final, a gestão já estava no segundo ano de mandato e nada foi feito”, relembra o ex-coordenador.
Na época do desastre, a Defesa Civil era subordinada à Secretaria de Planejamento da cidade. A equipe era reduzida, com apenas seis pessoas: duas na área operacional e quatro no setor administrativo. Os equipamentos para realizar ações educativas e preventivas eram praticamente inexistentes. “O treinamento envolve uma apostila, um vídeo projetor, e a Defesa Civil não tinha. Eu usava meu notebook pessoal e o data show para dar palestras. Mas eu queria que houvesse uma estrutura que não dependesse de mim, que continuasse funcionando, e isso não aconteceu”, relembra Robadey.
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Durante a tragédia, três bombeiros perderam a vida no resgate de vítimas.
Foto: major Manoel Venâncio Filho/ Corpo de Bombeiros - RJ, 2011
Para os próximos anos, o cenário não era animador. O orçamento votado para 2011 não previa investimentos adicionais na Defesa Civil, tampouco a prometida transformação da coordenadoria em uma secretaria. Insatisfeitos, Robadey e sua equipe decidiram permanecer apenas até o fim do período crítico de chuvas, que ia até março do ano seguinte. O último mês de 2010 trouxe um volume histórico de chuvas, estimado em 300mm, muito acima da média de 200 mm para o período. Com o solo já encharcado, a preocupação com o novo ano só aumentava. 
O último boletim da Defesa Civil, emitido em 10 de janeiro de 2011, previa apenas 12 mm de chuva para o dia seguinte. Porém, a realidade foi bem diferente do esperado.
seguinte
a tragédia
Edmo
Edneia
Jaqueline e André
Simone
A Reconstrução
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