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Simone
“Mãe rápido! O rio tá cheio”, Simone Moreno Coutinho de Lima acordou assustada com os filhos batendo na porta de seu quarto. A chuva, intensificada durante a noite, causou uma grande enchente no rio próximo de sua casa. Simone morava com o marido e os três filhos, no bairro de Córrego D’antas, em Nova Friburgo. Já em alerta, a costureira foi até a varanda olhar o estrago. A casa onde viviam, ficava em uma área mais alta do bairro, em uma encosta. A água não chegaria até lá, mas a preocupação eram os vizinhos que moravam próximos ao rio.
Logo o alerta de perigo redobrou: “Vocês têm que sair daí, está caindo a encosta”, avisou o cunhado. Já não havia chance de sair pela rua principal, o volume de água do rio era muito grande e já não havia mais energia elétrica na região. Com medo, a vizinha de Simone, Dionice, avisou que iria se abrigar na casa da filha, moradora de uma parte plana do bairro. O desafio era grande, descer 110 degraus na completa escuridão e com a chuva forte. Mesmo assim Simone e a família saíram de casa. No meio do caminho ouviram um estrondo muito forte: era a encosta do lado da casa que tinha cedido.
“Meu Deus, a Dionice!”, gritou Simone, sentada no degrau da escada. Pelo barulho, a costureira achou que sua vizinha e o marido haviam sido arrastados pelo deslizamento. Mas em alguns minutos, o casal retornou, ambos desesperados: “Meu Deus do céu, acho que morreu todo mundo ali embaixo!”, falou Dionice. Sem opção, tinham pouco tempo para encontrar uma saída no meio da escuridão. Seguiram  por uma trilha no mato, guiados pela pequena luminária que Simone havia pegado antes de sair correndo.
A trilha terminava em uma casa no alto da encosta, onde uma mulher ofereceu abrigo e roupas secas para que pudessem se trocar. Por um momento, acreditaram estar seguros, mas logo ouviram estalos na estrutura da construção. Sem outra opção, decidiram continuar descendo a escadaria. Na parte de baixo, se abrigaram em outra casa. E, de novo, voltaram a ouvir um barulho assustador: outra encosta havia desmoronado, levando consigo a casa mais próxima de onde estavam.
Às seis da manhã, Simone e sua família deixaram o local. Era preciso escalar a encosta para alcançar uma área plana, mas a chuva persistente tornava o caminho muito escorregadio. Quando o dia finalmente clareou, puderam ver a dimensão da destruição no bairro e descobrir que vizinhos haviam perdido a vida. Com a água do rio já um pouco mais baixa, decidiram seguir para a casa da mãe de Simone, ali perto. Na pressa, a costureira saiu descalça. "Passamos por cima de muitos destroços, o pé afundava na lama. Não sei como não me cortei", relembra.
Na casa da mãe de Simone removeram a lama do corpo com o que restava na caixa d’água. O filho mais velho da costureira, inseguro, decidiu que não permaneceria no bairro. “Vou embora. Vou esperar o carro do Bope passar e vou para o abrigo. Se vocês quiserem ficar, fiquem sozinhos”, disse à mãe. Foram então buscar ajuda na rodovia e seguiram para um abrigo no bairro de Olaria. Lá a família permaneceu por um mês, dividindo traumas e incertezas com os outros desabrigados.
“O tempo lá não foi ruim, mas também não era bom. A gente sabia que tinha perdido tudo. De uma hora para outra, não tínhamos mais casa para morar, foi bem doloroso. Graças a Deus não perdemos ninguém da família, mas a gente perdeu muitos vizinhos”. Com o terreno em uma área de risco, a casa de Simone foi interditada. Todos os dias, seu marido voltava ao local para tentar resgatar os pertences e objetos mais importantes. Sem transporte público disponível, ele caminhava 26 quilômetros, ida e volta, para realizar essa tarefa. Os pertences recuperados eram deixados na casa da irmã, também moradora de Córrego D’antas. Após mais um mês no abrigo, a família conseguiu alugar uma casa e aos poucos foram reconstruindo a vida em um novo bairro. Recomeço em Terra Nova
Assim como Simone, cerca de 35 mil famílias perderam suas casas no desastre de 2011. Para suprir a necessidade de moradia de milhares de pessoas, o Governo Federal construiu um grande conjunto habitacional, o Terra Nova, no bairro de Campo do Coelho. O terreno foi dividido em nove condomínios, com 14 blocos de cinco andares e entregue às famílias nos anos de 2013, 2014 e 2016. 
As famílias que tiveram as casas destruídas ou interditadas por estarem em áreas de risco, eram cadastradas pela Secretaria Estadual de Obras (Seobras), por meio do Canteiro Social. De acordo com a organização, mais de 2 mil famílias foram contempladas com os imóveis, a partir do programa “Minha Casa Minha Vida”. Foi em 2014 que Simone recebeu a notícia da casa nova. “Não me ligaram, foi a minha vizinha que falou assim: ‘Simone, chamaram o seu nome lá no negócio do apartamento’ e eu fui lá receber”, relembra.
Documentário “Terra Nova - Era ontem” aborda o dia a dia de moradores dos conjuntos habitacionais.
Para ajudar nos custos, algumas famílias cadastradas recebiam um aluguel social no valor de R$500,00, até a entrega dos apartamentos. “Foi um custo para a gente conseguir o apartamento, não foi fácil. Eles não queriam dar, porque meus filhos trabalhavam e alegavam que a renda da gente era alta e não tínhamos direito de ganhar. Mas a gente recebia o aluguel social, como pode? ”, explica Simone.
Todo o processo de realocação dessas famílias foi feito a partir do decreto 43.415/2012. Além do aluguel social, ele previa o pagamento de uma indenização em dinheiro, ou a compra assistida do imóvel; assim o governo compraria as casas interditadas e o dinheiro seria utilizado para a compra de imóveis em áreas seguras. No entanto, um levantamento feito pelo pesquisador Vinícius Ervatti Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com os moradores do Terra Nova nos anos de 2017 e 2022, mostrou que 78% dos entrevistados não receberam a opção da indenização, o que fez com que muitos se mudassem para o conjunto por falta de opção.
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Conjunto habitacional Terra Nova 3.
Foto: Joana Tápea
A entrega dos apartamentos era feita por ordem de inscrição no programa e de maneira aleatória, dependendo do término de construção dos condomínios e a situação de cada família. Os primeiros andares foram entregues a idosos e pessoas com alguma dificuldade de mobilidade, pela falta de acessibilidade. Desde 2014, Simone mora com o marido no conjunto habitacional Terra Nova 3, em um dos últimos pontos do bairro. Mesmo depois de dez anos, ainda não se acostumou por completo com o lugar. “Quando eu vim para cá eu chorei muito, era muito longe. Eu pensei que ia ganhar na parte debaixo do bairro. Eu sofri e chorei muito, mas com o tempo fui me conformando”.
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Acesso central aos blocos no Terra Nova 3.
Foto: Joana Tápea
Foram investidos no total R$292 milhões na construção dos conjuntos – R$163,5 milhões do Governo Federal para os apartamentos e R$129 milhões do governo do estado do Rio de Janeiro para a desapropriação, doação e obras de infraestrutura. Cada apartamento tem 43 metros quadrados, divididos em dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. De acordo com Simone, o espaço é pequeno para se viver, mas muitos vizinhos dividem o local com mais de quatro pessoas.
Cada condomínio também contava com uma área de churrasqueira e brinquedos para as crianças que, hoje em dia, são, em sua maioria, espaços  abandonados pela falta de manutenção das áreas comuns. Uma das grandes reclamações de moradores é o descaso do local pelo poder público. Esgoto aberto, criminalidade e falta de serviços básicos afetam diretamente a qualidade de vida dessas pessoas. Nos arredores, não há escolas, posto de saúde ou comércio, obrigando os moradores a irem até o centro de Conselheiro Paulino.
Vídeo mostra infestação de ratos no Terra Nova
Além da distância, o que mais incomoda Simone e o marido é a adaptação ao modo de vida dos outros moradores. Acostumados com a privacidade e o quintal, sofrem com o barulho em horários de silêncio. “A gente deita mais cedo, porque tem que trabalhar de manhã no outro dia. O pessoal começa a fazer barulho às 23 horas, na cabeça da gente, e é muito difícil. Muita gente não ficou  aqui, ganhou o apartamento e foi embora”, comenta.
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Moradores constroem garagens improvisadas próximo aos condomínios.
Foto: Joana Tápea
De acordo com o Canteiro Social (Seobras) e a Defesa Civil do Município, as famílias que receberam as casas vieram de diversos bairros da cidade, em sua maioria de Conselheiro Paulino, Riograndina, centro e da zona rural de Campo de Coelho. Pela aleatoriedade no recebimento dos apartamentos, foram realocadas em diversos conjuntos habitacionais, fazendo uma grande mistura de culturas e modos de vida.  
A pesquisa feita por Silva, mostra que quanto mais é o tempo de permanência dos moradores, mais há a insatisfação com o lugar. Entre as pessoas que receberam os apartamentos em 2013, 67% querem se mudar. Essa evasão é observada pela quantidade de apartamentos que foram vendidos ou alugados durante os anos. Em 2022, 22% dos entrevistados não eram os primeiros locatários do lugar. “Tem muita gente que vendeu ou alugou, mas tudo a preço de banana. Conseguem no máximo R$20 mil e R$30 mil. Com esse dinheiro ninguém compra terreno em lugar nenhum”, explica Simone.
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Esgoto a céu aberto e lixo são jogados próximos aos conjuntos habitacionais 2 e 3.
Foto: Joana Tápe
A falta de uma política habitacional eficaz faz com que muitas famílias retornem para as áreas de risco. Pessoas que antes viviam em casa com quintal ou em uma área rural se viram de uma hora para outra em espaços pequenos e com falta de serviços básicos. A família de Simone, continua morando em Córrego D’antas, o desejo de retornar ao bairro de origem ainda permanece presente em sua vida.
seguinte
a tragédia
Edmo
Edneia
Jaqueline e André
Simone
A Reconstrução
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